sábado, outubro 23, 2004

À noite

A noite tudo é mágico, tudo exala poder, tudo é interessante. As pessoas falam menos, e se fazem entender. Os corpos se movem com a intuição, a brisa leva as pessoas, o orvalho lava suas almas. A noite o céu tem mais mistérios, os mitos são mais lógicos e inconscientemente acreditamos em algo mais. A noite o tímido sozinho, não se sente só e o alegre reflete nos porquês. A noite todos se transformam, mesmo que de manhã voltem a ser como antes. A noite as lembranças pedem segundas chances e as pessoas falam repetidos não. A noite a mente está mais solta e todas as sensações se tornam duplas ou triplas, o ar se faz mais presente, as saudades mais fortes e os medos mais insistentes. A noite somos mais parecidos com nós mesmos, podemos experimentar a maior alegria e a maior tristeza e até mesmo um pedaço da perfeição. A noite os sonhos se tornam por um momento realidade. A noite nos remexemos com nossos planos, nos assustamos com nossos pensamentos, tentamos esquecer, tentamos entender porque. A noite desejamos se levados, desejamos nunca mais voltar, desejamos voar e poder gritar que nós somos nós e tocar o céu e não parar de ouvir as musicas antigas que apertam nosso coração, queremos ver as estrelas se apagarem e as novas se acenderem, queremos ver a lua gigante se aproximar e entrar pela janela e perguntar “Que foi?”, ou só andar, pelo mundo, lendo a vida nas paredes e nos paralelepípedos, roubando a energia dos passos que já foram dados e das noites que já passaram. A noite queremos nos libertar, queremos nos levantar, queremos rir alto de coisas pequenas, e chorar por tudo que ainda não tinha nos incomodado. Na noite a solidão é mais solidão...

domingo, outubro 17, 2004

Não me deixe

Não me deixe
Devemos esquecer
Tudo pode ser esquecido
Que já tenha passado
Esquecer os tempos
Dos mal-entendidos
E os tempos perdidos
Tentando saber como
Esquecer as horas
Que as vezes mataram
Com sopros de porque
O coração de felicidade
Não me deixe
Eu vou te oferecer
Pérolas de chuva
Que vêm dos países
Onde não chove
Eu vou cavar a terra
Até a minha morte
Para cobrir teu corpo
De ouro e luzes
Eu farei uma terra
Onde o amor será rei
Onde o amor será lei
Onde tu serás rainha
Não me deixe
Eu inventarei
Palavras sem sentido
Que tu compreenderás
Eu te falarei
Sobre os amantes
Que viram duplamente
Seus corações incendiarem-se
Eu te contarei
A história deste rei
Morto por não poder
Te reencontrar
Não me deixe
Nós freqüentemente vemos
Renascer o fogo
Do vulcão antigo
Que pensamos estar velho demais
Nos é mostrado
Em terras que foram queimadas
Nascendo mais trigo
Do que no melhor abril
E quando vem a noite
Com um céu flamejante
O vermelho e o negro
Não se casam
Não me deixe
Eu não vou mais chorar
Eu não vou mais falar
Eu me esconderei lá
Para te contemplar
A dançar e sorrir
E para te ouvir
Cantar e então rir
Deixa que eu me torne
A sombra da tua sombra
A sombra da tua mão
A sombra do teu cachorro
Não me deixe

quinta-feira, outubro 14, 2004

Invisibilidade

Na primeira vez em que tomei o soro da invisibilidade tudo funcionou bem. Claro que eram outros tempos. Não havia Internet, telefones celulares, câmeras de vigilância e coisas do gênero. Eu consegui simplesmente desaparecer e, em pouco tempo, esqueceram-se de mim. Bom. Perdoem-me por dizer o óbvio, mas quem se propõe a ficar invisível quer mais é ser esquecido, certo?
Nem sempre, alguém me dirá. Eu entendo. Há os pretensos invisíveis que buscam apenas causar alguma celeuma. Sumir de mentira, fingir que some. Psicologia reversa. Ou não. Nada sei de psicologia, apenas gosto da expressão “psicologia reversa”. Tem alguma coisa a ver com o contrário, não é isso? Pois então. Se alguém some para ser procurado é porque quer ser achado, o que significa que a última coisa que pretende é sumir de verdade.
Claro que há também os puramente desafiadores, que só querem provar que podem sumir além de qualquer possibilidade de descoberta. Têm grande prazer em observar os gatos que perambulam enlouquecidos atrás deles, são como ratos que não negam a tradição dos desenhos animados e são infinitamente mais espertos e ágeis do que os pobres felinos. Não é meu caso.
Assim como foi da primeira vez, eu tomei agora o soro da invisibilidade para desaparecer da vista de todos e ser devidamente deixada em paz. Não contei com a possibilidade de haver alguém interessado em me encontrar, mas imaginei que, caso isso acontecesse, o indivíduo, frustrado nas tentativas, acabaria por me esquecer definitivamente. A quem poderia interessar a vida sem graça de uma ex-agente secreta?
Parece que não deu muito certo. Fui descoberta, como se fosse uma iniciante. Alguém me disse que andaram perguntando por mim. Não entendo isso. Se me viram por aí, por que não vieram falar comigo? As pessoas são mesmo muito estranhas. Hoje em dia sou totalmente inofensiva. Tudo o que quero é levar uma vida normal, longe das conspirações internacionais. A única coisa que guardo daqueles tempos é este grande suprimento de soro da invisibilidade que consegui esconder num frasco de xampu.
Parei de tomar o soro mas, no entanto, não vou desistir desta preciosidade que é a invisibilidade. Vou apenas mudar a minha estratégia: de agora em diante, farei farta distribuição do soro para quem me chatear. Afinal de contas, o inferno são os outros. Se alguém tem que sumir, que sejam eles.

Tirado daqui

domingo, outubro 03, 2004

Almas Perfumadas

Ana Cláudia Saldanha Jácomo
Tem gente que tem cheiro de passarinho quando canta. De sol quando acorda. De flor quando ri. Ao lado delas, a gente se sente no balanço de uma rede que dança gostoso numa tarde grande, sem relógio e sem agenda. Ao lado delas, a gente se sente comendo pipoca na praça. Lambuzando o queixo de sorvete. Melando os dedos com algodão doce da cor mais doce que tem pra escolher. O tempo é outro. E a vida fica com a cara que ela tem de verdade, mas que a gente desaprende a ver.
Tem gente que tem cheiro de colo de Deus. De banho de mar quando a água é quente e o céu é azul. Ao lado delas, a gente sabe que os anjos existem e que alguns são invisíveis. Ao lado delas, a gente se sente chegando em casa e trocando o salto pelo chinelo. Sonhando a maior tolice do mundo com o gozo de quem não liga pra isso. Ao lado delas, pode ser abril, mas parece manhã de Natal do tempo em que a gente acordava e encontrava o presente do Papai Noel.
Tem gente que tem cheiro das estrelas que Deus acendeu no céu e daquelas que conseguimos acender na Terra. Ao lado delas, a gente não acha que o amor é possível, a gente tem certeza. Ao lado delas, a gente se sente visitando um lugar feito de alegria. Recebendo um buquê de carinhos. Abraçando um filhote de urso panda. Tocando com os olhos os olhos da paz. Ao lado delas, saboreamos a delícia do toque suave que sua presença sopra no nosso coração.
Tem gente que tem cheiro de cafuné sem pressa. Do brinquedo que a gente não largava. Do acalanto que o silêncio canta. De passeio no jardim. Ao lado delas, a gente percebe que a sensualidade é um perfume que vem de dentro e que a atração que realmente nos move não passa só pelo corpo. Corre em outras veias. Pulsa em outro lugar. Ao lado delas, a gente lembra que no instante em que rimos Deus está dançando conosco de rostinho colado. E a gente ri grande que nem menino arteiro.